Para Maureen Santos, momento deve suscitar debates sobre toda a cadeia de produção de carne e de outros alimentos
Por: Mariana PitasseFoto: Brasil de Fatos |
Brasil de Fato: A que atribui toda a repercussão em torno da operação Carne Fraca na última semana?
Maureen Santos: A operação está trazendo
bastante polêmica por conta das denúncias, que algumas pessoas acreditam
ter um motivador político forte por trás, mas principalmente porque é
um assunto que toca muito individualmente para quem come carne e também
para quem não come. A partir da repercussão, vários temas ficam em
evidência. Do ponto de vista do que a gente vem trabalhando, o principal
deles é o modelo de produção e desenvolvimento que precisa ser revisto.
Quanto de carne é consumida hoje no Brasil?
No Brasil, se consome de 75 a 90 quilos de carne por pessoa
em um ano. É uma média alta, que ultrapassa a média mundial dos países
emergentes, que é de 30 quilos por pessoa em um ano. Nos últimos anos
houve um aumento considerável do consumo porque a produtividade aumentou
e o preço baixou.
Uma das críticas que circulou pelas redes sociais
falava que enquanto a classe média discutia sobre a carne intoxicada,
entre as camadas mais pobres, o clima era de comemoração porque o preço
da carne havia baixado nos mercados. Você acredita que essa repercussão
vai impactar, de fato, o consumo da carne no país?
Como você disse, muita gente não está tão preocupada assim
com o que consome e esse é um ponto que acaba esbarrando em questões
sociais, de renda e estilo de vida. Mas de imediato tem um impacto sim
no consumo e a mídia tem um papel muito importante nesse processo. O
noticiário só fala sobre intoxicação da carne. No entanto, a médio e
longo prazo o consumo voltará a ser o que era. Agora estamos em período
de alerta e aguardando a explicação das empresas, mas daqui a pouco a
propaganda vai voltar com tudo e as pessoas vão retornar para sua dieta
de costume. Por isso, estamos em um momento importante de reflexão.
Temos que aproveitar que esse assunto está sendo muito comentado para
debater o que a gente come e o modelo em que a gente está inserido. Não é
só uma questão de carne estragada. Faz parte do sistema em que a carne é
produzida com bastante uso de fármacos e hormônios e que
percorre distâncias imensas para chegar ao nosso prato. É um modelo de
produção insustentável para o planeta. Todas essas questões estão sendo
invisibilizadas pela mídia para tratar apenas da carne estragada.
Além de só falar na carne estragada, o noticiário
tratou como uma questão generalizada. Isso está prejudicando as vendas,
alguns países já barraram a importação da carne brasileira. Qual sua
avaliação sobre essa questão? A detecção de um problema em alguns
frigoríficos expressaria uma tendência da produção nacional?
Vimos um número importante de frigoríficos envolvidos e
grande parte deles são bem famosos, mas não acredito que seja algo
disseminado na cadeia. Para exportar a carne há procedimentos
extremamente rigorosos, então, não pode ser generalizado. Isso não só
para a carne, mas se vermos as frutas, os legumes e os outros produtos
que são exportados, têm outro padrão, de melhor qualidade do que os que
permanecem no mercado nacional. Temos que lembrar que a gente vive em um
sistema capitalista que tem como base a competição. Outros países estão
enxergando essa falha da produção brasileira como uma oportunidade de
desenvolverem seus comércios. No cenário internacional é a carne do
Brasil recuando e outros mercados tentando ocupar seu espaço, isso faz
parte da guerra comercial. Então, não fico surpresa que países
estrangeiros estejam barrando a carne brasileira por uma questão de
disputa.
Caso se comprovem as acusações de venda de produtos
contaminados ou corrupção de agentes públicos e privados, quais devem
ser e contra quem devem incidir as sanções legais?
Deve haver uma investigação muito profunda do que está
acontecendo para punir quem for necessário. Mas a questão que mais
importa nesse contexto é que as pessoas comecem a se preocupar com o que
estão comendo. O tema da investigação não trata os problemas da cadeia.
O debate político é importante, mas está invisibilizando o cerne da
questão que não é só corrupção, mas o sistema de produção de carne que
está todo errado. Esse é o assunto mais urgente, no entanto, o foco do
debate está sendo desviado.
Quais as questões mais gritantes da produção da carne no Brasil?
Hoje, a produção de carne se utiliza água de forma absurda,
contribui para desmatamento dos biomas, concentra renda, entre tantas
outras questões. São 200 milhões de hectares destinados à produção,
correspondente a nove vezes o tamanho do estado de São Paulo. Além
disso, a população brasileira é de 207 milhões de pessoas, enquanto as
cabeças de gado superam 210 milhões. A carne estragada vai ser corrigida
por eles em pouco tempo, mas ainda sim temos que exigir um novo padrão
de desenvolvimento para o nosso país, em que a produção da carne dentro
dos moldes de hoje não caiba.
O Atlas da Carne aponta que a criação animal em escala industrial traz consequências como a fome. Por quê?
A produção em cadeia não é feita para atender quem está com
necessidade de alimentação e sim a uma camada pequena da população.
Aqui no Brasil, o consumo é mais disseminado, mas em outros países em
desenvolvimento e de pobreza extrema, a nutrição que a carne traz também
não é acessada. A narrativa de que é preciso aumentar a produtividade é
mentirosa, porque a carne só atende às disputa do mercado. O objetivo
não é o combate à fome e à pobreza, se não, o foco seria a produção
camponesa. Ainda que a produção familiar e camponesa tenha aumentado nos
últimos anos, com crédito e assistência técnica, definitivamente não
foi prioridade.
Qual o caminho que o consumidor deve seguir a partir desse polêmica em torno da carne?
Deve servir como momento de reflexão, não só em relação a
carne mas a tudo que a gente come. Voltar as atenções para a
produção local é um movimento muito importante. É preciso valorizar o
espaço de feiras locais, produções locais, formas de cooperação entre o
consumidor e o produtor. Assim as duas demandas serão atendidas: comida
de qualidade para o consumidor e renda para o produtor. É preciso pensar
na agroecologia como uma alternativa. Temos que buscar novas formas. É
fundamental pensarmos diferente e exigirmos a qualidade dos nossos
alimentos. Temos que debater o modelo de produção dos alimentos.
Edição: Vivian Virissimo
Fonte:Brasil de Fatos
Sem comentários:
Enviar um comentário